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Tuesday, September 27, 2005

O MOVIMENTO UNIVERSAL DAS COISAS

Vimos que o movimento universal das coisas em seu devir pode ser observado no ciclo das estações do ano, no ciclo diário (manhã, meio-dia, tarde e meia noite), no ciclo vital humano, nas fases do crescimento dos vegetais. Há, no entanto, dois casos particulares do devir eclosivo, ou vegetativo (o qual manifesta-se em fases dentro de um ciclo, as quais podem ter um circuito ou vários num eterno retorno ao início, dando origem a um novo circuito, mas que nunca será idêntico ao anterior, pois todas as coisas estão sendo aperfeiçoadas neste movimento), que gostaríamos de analisar mais detidamente.
São eles o que se manifesta na metamorfose no reino animal e os eventos históricos que marcam a evolução do homem sobre a terra. A razão do tratamento particularizado dispensado a estes casos, justifica-se porque há uma correspondência, uma analogia entre ambos, em que o primeiro elucida o segundo, a saber, o que concerne à evolução humana, assunto sobre o qual não poderíamos deixar de refletir, face ao objetivo deste trabalho.
O problema do mal, digo, o da compreensão de seu propósito, constitui-se num dos maiores desafios ao homem de fé. A existência do mal pode ser, em parte, explicada pela condição atual do mundo, marcada pelo inacabamento e pela incompletude. Todavia, ainda é difícil para nós, hoje, visualizarmos todo o alcance da complexidade deste problema.
Se encarássemos o mal de maneira propositalmente inexata enquanto desordem, então seria mais fácil tentar um paralelo entre o caos social e planetário com que convivemos, e o caos da informidade da argila enquanto está sendo trabalhada pelo oleiro, numa alusão ao trecho do livro de Jeremias já citado no capítulo anterior.
Sabemos que no princípio a terra era sem forma e vazia. De fato, enquanto o trabalho do oleiro está inacabado, a forma final que está na mente do artífice ainda não está definida no barro. Neste ponto, se há de fato um paralelo entre o trabalho do oleiro e a obra criadora divina, alguém poderia indagar: Por que então Deus não imprime no barro caótico a forma final que pretende comunicar-lhe num piscar de olhos?
Compreendamos: para Deus todo este processo é um piscar de olhos. Somente para nós, seres finitos, parece ser demorado. Isto não é uma limitação de Deus, mas, sim, nossa.
Há duas forças que atuam no universo em sua atual conjuntura, quais sejam, as potências da perdição e da ignorância (cujo emblema, entre outros, é o norte, a banda da meia noite, das densas trevas, onde o sol entra em seu nadir), e as da verdade, do esclarecimento e da vida (tipificada na Bíblia umas vezes pelo sul, o lado ensolarado do meio dia, isto é, banda do zênite, outras vezes, pelo oriente, o lado onde o sol nasce, querendo simbolizar a eclosão da luz da razão e da verdade no horizonte da história.)
O embate entre estas duas forças pode ser observado tanto na história da humanidade quanto dentro de nós próprios. Este último caso é mencionado na Escritura, acerca do conflito entre o velho homem e o novo homem: ...quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe pelas concupiscências do engano, e vos renoveis no espírito de vosso entendimento, e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade. (Efésios 4: 22-24.) Há uma correspondência entre o que ocorre na dimensão coletiva, isto é, histórica, e o que ocorre em escala individual, isto é, psíquica.
Existe também um paralelo entre o ciclo vital (ou evolucionário) na esfera ontogenética e na filogenética, sobre o que já falamos no capítulo anterior. Com efeito, os estágios da evolução de um indivíduo humano reproduzem os do ciclo evolucionário da humanidade como um todo, o qual possui, como também já vimos, quatro estágios básicos. Dito de outro modo, possui ele quatro metamorfoses. Esta evolução é um processo natural de desenvolvimento e maturação, não tendo qualquer relação com a famigerada idéia darwiniana de uma “evolução” por seleção natural.
O texto de Efésios citado há pouco falou-nos acerca do despojar-se do velho homem, e do revestir-se do novo homem, e esta mudança é similar à uma metamorfose, e está no cerne do enigma do desenvolvimento humano. É a partir daí que poderemos traçar uma série curiosa de analogias.
No ciclo vital (ou evolucionário) de alguns insetos, há quatro estágios (ou metamorfoses): larva, pupa, inseto alado e sua morte após a procriação. De modo similar, a história da humanidade, segundo o livro de Daniel, divide-se em quatro metamorfoses, ou quatro impérios (não impérios no sentido convencional da história profana), os quais são representados pelos quatro animais da visão de Daniel, a qual passamos a transcrever:

Falou Daniel e disse: Eu estava olhando, durante a minha visão da noite, e eis que os quatro ventos do céu agitavam o Grande Mar. Quatro animais, grandes, diferentes uns dos outros, subiam do mar. O primeiro era como leão, e tinha asas de águia; enquanto eu olhava, foram-lhe arrancadas as asas, foi levantado da terra, e posto em dois pés como homem; e lhe foi dada mente de homem. Continuei olhando, e eis aqui o segundo animal, semelhante a um urso, o qual se levantou sobre um dos seus lados; na boca, entre os dentes, trazia três costelas; e lhe diziam: levanta-te, devora muita carne. Depois disto, continuei olhando, e eis aqui outro, semelhante a um leopardo, e tinha nas costas quatro asas de ave; e tinha também este animal quatro cabeças, e foi-lhe dado domínio. Depois disto, eu continuava olhando nas visões da noite, e eis aqui o quarto animal, terrível, espantoso e sobremodo forte, o qual tinha grandes dentes de ferro; ele devorava e fazia em pedaços, e pisava aos pés o que sobejava; era diferente de todos os animais que apareceram antes dele, e tinha dez chifres. (...) Continuei olhando, até que foram postos uns tronos, e Ancião de dias se assentou; sua veste era branca como a neve, e os cabelos da cabeça como a pura lã; seu trono era chamas de fogo, cujas rodas eram de fogo ardente. (Daniel 7: 2-9.)

A visão do profeta Daniel corresponde ao movimento universal das coisas em todos os planos de manifestação da existência. Os quatro impérios representam o equilíbrio e o antagonismo, assim como a evolução cíclica da forma, tanto na natureza como na vida humana e social. Corresponde à metamorfose no reino animal (que é a realização da esfinge, o que explicaremos melhor mais adiante), ao romance da rosa no reino vegetal, e à formação ouro na esfera mineral.
O leão alude aos tempos primitivos, marcados pela guerra e pelo nomadismo. Suas asas são cortadas, sendo isto uma referência ao momento em que a humanidade se fixa. O urso tipifica os grandes impérios da força brutal O leopardo de quatro cabeças as repúblicas e o desmembramento dos estados. O quarto e último animal é um emblema do feudalismo financeiro e industrial.
Na seqüência, o texto nos relata que o quarto animal foi morto e toda a autoridade foi dada ao Ancião de dias (cf. Daniel 7: 11-13). Muitos entendem, com razão, este Ancião como sendo nosso Senhor Jesus Cristo, mas cremos também significar a maturidade humana e a perfeita varonilidade: o novo homem, do qual Jesus é a expressão mais perfeita (note que não destoamos, necessariamente, da interpretação anterior).
O que o texto focaliza é a evolução humana em sua transição da inconsciência para a consciência. Se entendermos consciência como conhecimento de si, isto é, o conhecimento de sua existência pela própria alma, o homem somente alcança este estado quando compreende finalidade para a qual existe.
Dissemos que os quatro impérios universais de Daniel simbolizam o movimento universal de todas as coisas, e que este movimento é observado no reino animal pela realização da esfinge, isto é, pelo fenômeno da metamorfose, mais visível entre os insetos. Há inclusive um gênero de insetos que recebe este nome (gênero Sphinx), representados por grandes mariposas que, enquanto lagartas, apresentam vivas cores e um corno, as quais não fazem casulo.
A esfinge é, originalmente, um animal híbrido mitológico (similar a muitos monstros fabulosos que figuram também na Bíblia), que foi representado entre os egípcios como uma cabeça de homem saindo dum corpo de touro com garras de leão, apresentando duas asas de águia sobre os flancos. Sacerdotes imemoriais a explicavam como um símbolo da grande evolução do homem, na qual se processa a sua emersão da natureza animal.
No Rei Édipo, de Sófocles, Édipo é confrontado pela Esfinge nas cercanias da cidade de Tebas. Este terrível monstro, que tinha peito de mulher, corpo de leão, garras e asas de águia, já tinha devorado incontáveis tebanos que não decifravam seus enigmas. A Édipo a esfinge perguntou que animal andava de manhã sobre quatro pés, sobre dois durante o dia e sobre três pela noite. Édipo respondeu-lhe que era o homem, porque engatinhava na infância, andava ereto quanto adulto e apoiava-se num bordão quando velho. Dizendo isto, o monstro precipitou-se num despenhadeiro e morreu.
Diremos de maneira mais clara em que termos, em nosso entender, acontece esta evolução. Trata-se da passagem do reino das paixões sensuais rumo ao engrandecimento de suas faculdades mentais. Por paixões sensuais entendemos um universo amplo de coisas (não apenas o impulso sexual, que não é necessariamente ruim em si mesmo), tais como a ignorância, o ódio, o egoísmo, as ambições e tudo aquilo que nos prende à animalidade e ao materialismo pela ânsia desenfreada de gratificação dos sentidos.
Na visão de Daniel, o quarto animal devorava e fazia em pedaços, e é isto que o homem atualmente vem fazendo aos seus semelhantes e ao seu planeta: tem maltratado o seu próximo tratando-o como um meio, e tem destruído seu próprio ambiente poluindo o ar, os rios, os mares, destruindo florestas virgens e paradisíacas, deixando um rastro de destruição. Em síntese, podemos definir este complexo sistema que denominamos paixões sensuais como sendo o nosso ego falso, aquilo que aproxima o homem das bestas irracionais.
O homem engrandece suas faculdades mentais quando, pela descoberta do domínio do dever, tendo o homem alcançado a compreensão clara de suas relações necessárias com o universo e com seus semelhantes, voluntariamente faz dessas relações o propósito de seu destino. Esta é a consciência amadurecida, crística, do Ancião de dias. O homem é portanto híbrido, uma espécie de deus num animal. E é neste contexto que a híbrida Esfinge é um emblema deste dilaceramento inerente à atual condição humana.
Há um momento do desenvolvimento da lagarta, que é quando está metamorfoseando-se em inseto adulto, em que se observa nela uma tensão dialética entre o ser lagarta e o ser inseto alado: o penoso esforço da criatura para libertar-se de seu casulo. Isto é similar ao processo de regeneração humana de libertar-se do casulo de sua velha natureza. É de fato admirável a afinidade que há entre a revelação natural e a revelação escrita. A besta morrerá, e o Ancião ressuscitará.
Embora o poder da ressurreição já esteja sendo liberado em nossas vidas, ainda sentimos o casulo (o bagaço) de nossa velha natureza oferecendo resistência à grande metamorfose em processo. A lagarta torna-se inseto no momento em que a condição de ser lagarta está em sua maturação máxima e, portanto, de propiciar o salto quântico. Tudo se passa também como se aquilo que já tivesse sido bom num estágio anterior do ciclo vital, passasse a ser um obstáculo para o próximo: o casulo foi importante para a lagarta, mas para o inseto que tenta livrar-se dele é angústia. Todavia, o esforço do inseto para libertar-se de seu casulo fortalece suas asas e habilita-o a voar. Isto ocorre, no caso da evolução humana, tanto na dimensão individual (ou psíquica), quanto coletiva (ou social).
Isto quer dizer que estas duas forças, a saber, a inclinação para o bem e a inclinação para o mal, estão, ambas em maturação no mundo. O joio cresce junto com o trigo, tal como no texto que se segue: E ele lhes disse: um inimigo é quem fez isso. E os servos lhe disseram: queres pois que vamos arrancá-lo? Porém ele lhes disse: Não; para que ao colher o joio não arranqueis o trigo com ele. (Mateus 13: 28-29.) O mal, além de desordem e casulo (casca morta), é também praga.
O mal é tensão. Tensão entre a informidade e a forma; entre a condição de lagarta e a de inseto alado; entre o novo e o velho homem; entre a incompletude do processo e sua conclusão. O movimento da história seria o da diferenciação e separação entre os filhos do Reino (a boa semente, ou o trigo na parábola de Jesus Cristo, que são os homens de boa vontade) e os filhos do maligno (a má semente, tipificada pelo joio): Deixai crescer ambos juntos até a ceifa; e, por ocasião da ceifa, direi aos ceifeiros: colhei primeiro o joio, e atai-o em molhos para o queimar; mas o trigo ajuntai-o ao meu celeiro. (Mateus 13: 28-30.) O trigo só pode ser separado do joio quando ambos estiverem maduros e prontos para a colheita.
Todavia, a forma atrai a matéria; a condição futura de inseto atrai a atual de lagarta (para que esta alcance aquela); a incompletude atrai a sua conclusão, isto é, a plenitude, e tudo isto com ânsia magnética, pois este é o mistério do amor, da atração universal, que faz girar a roda do devir, sendo este o grande arcano da natureza.
Tudo isto está insinuado nos textos dos profetas: Agora se congregam muitas nações contra ti, que dizem: seja profanada, e os nossos olhos verão seus desejos sobre Sião. Mas não sabem os pensamentos do Senhor, nem entendem o seu conselho: porque as ajuntou como gavelas numa eira, Levanta-te, e trilha, ó filha de Sião; porque eu farei de ferro a tua ponta, e de cobre as tuas unhas, e esmiuçarás a muitos povos, e o seu ganho será consagrado ao Senhor de toda a terra. (Miquéias 4: 11-13.)
A hostilidade entre a boa e a má semente existe, existiu e existirá, e alcançará o seu ponto de culminância na consumação dos séculos, na Era Messiânica, que já começou.
Já discutimos no capítulo anterior que as transmutações históricas não têm compromisso cronológico, isto é, linear, podendo todas elas estarem coexistindo no espaço e no tempo. O fim deste processo é a plenitude, para a qual tende o ser. No entanto, é inevitável que esta oposição desencadeie num dado momento, uma guerra: Vi o céu aberto, e eis um cavalo branco. O seu cavaleiro se chama Fiel e verdadeiro, e julga e peleja com justiça (...); e seguiam-no os exércitos que há no céu, montando cavalos brancos, com vestiduras de linho finíssimo, branco e puro(...). E vi a besta e os reis da terra, com os seus exércitos, congregados para pelejarem contra aquele que estava montado no cavalo, e contra seu exército. (Apocalipse 19: 11-19.)
Esta oposição que há entre os exércitos do cavaleiro Fiel e o da besta, entre o verbo e a ignorância, entre a virtude varonil e o vício bestial, entre a boa vontade entre os homens e o egoísmo, entre a boa e a má semente culminará, com efeito, numa grande batalha mundial. Isto nos trará de volta os tempos heróicos?
Esta batalha será muito mais de Deus que de qualquer outro: Portanto esperai-me a mim, diz o Senhor, no dia em que eu me levantar para o despojo; porque o meu juízo é ajuntar as nações e congregar os reinos, para sobre eles derramar a minha indignação, e todo o ardor de minha ira; porque toda esta terra será consumida pelo fogo do meu zelo. (Sofonias 3: 8.)
Há uma distinção paulatina que vem ocorrendo no curso da história entre estas duas forças, distinção esta que evolui gradativamente de um raio de ação psíquico ou individual, para outro de envergadura social e histórica. Os eventos de amplitude local ou regional (sendo eles mesmos pequenas mônadas históricas) também se agigantam, tomando proporções cada vez mais universais.
Em suma, através das provações por que passam os justos, sua estrutura vem sendo refinada como o ouro em uma refinaria; como a constituição da argila que, pela manipulação do artífice, vem sendo preparada para receber sua forma final. O sofrimento a que os ímpios submetem os justos é um pouco como um cinzel, com o qual Deus vem esculpindo um novo homem. Eis o antagonismo dialético entre a causa material e a causa formal.
É um pouco também como a irritação de um corpo estranho no interior de uma ostra: faz ela produzir uma pérola. Assim acontece também conosco: estimula e liberta o que há de mais divino em nós, mesmo que, num primeiro momento, só haja desespero.Em tudo isto podemos contemplar a sabedoria e o amor de Deus: o mal teve início e terá fim um dia. A existência do mal está encerrada num espaço de tempo desprezível em comparação com a eternidade. Quando Deus colocou estas duas coisas na balança antes da fundação do mundo, a saber, a existência do mal num espaço ínfimo de tempo e a vida eterna para os que a escolhem, concluiu que valeria a pena.

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