Uma das vigas mestras deste trabalho é a noção de gnose, a qual esforçamo-nos em resgatar, face ao estado de devastação em que se encontra a religião por conta da ignorância e do fanatismo. Consta, no Novo Testamento, o seguinte trecho: Porque a um pelo Espírito é dada a palavra da sabedoria; e a outro pelo mesmo Espírito a palavra da ciência... (1 Coríntios 12: 8)
A palavra no original grego traduzida nesta passagem por ciência é gnósis. Mais adiante, também lemos: E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. (1 Coríntios 13: 2) A palavra gnósis aparece aí mais uma vez onde ela é traduzida por ciência. Note que, na tradição apostólica, por gnose se entendia a revelação de mistérios por meio de uma luz interior, espiritual.
Para comunicarmos nossa leitura do conceito cristão de gnose, pareceu-nos necessário introduzir ainda um outro, a saber, o de razão seminal. Este conceito foi utilizado pelos estóicos (que o receberam, por sua vez, de Plotino), reapropriado pelos cristãos por Justino e desenvolvido por Santo Agostinho. Posteriormente, vários outros autores cristãos, como São Boaventura, utilizaram-no.
As razões seminais seriam princípios diferenciadores das espécies dos seres futuros em estado de germe contidos na matéria informe do primeiro momento da criação. Todavia, quando dizemos que o Verbo ilumina todo o homem, fazemo-lo querendo dizer que o conhecimento está na alma na forma de uma razão seminal, isto é, de uma energia latente.
Segundo os sábios e filósofos do oriente, o conhecimento estaria na mente como o fogo em uma pedra. É a fricção que o faz brotar. De modo similar, com relação aos nossos sentimentos e ações (os sorrisos e lágrimas, alegrias e tristezas, elogios e censuras), cada um deles surgiria do nosso interior por um impulso desperto por golpes, isto é, estímulos internos e externos.
A resultante de todo este somatório de golpes (chamado ação, por estes filósofos) é aquilo que somos. Estes impulsos provocados na alma, acenderiam nela a sua chispa, o que resulta em poder e conhecimento.
Com efeito, a verdade estaria latente em nossa alma como um botão de rosa fechado, o qual vai se abrindo à medida que vai sendo fortalecido pela luz e pelo calor do sol. Quereis que uma roseira floresça no inverno? Colocai-a em uma estufa e vereis como suas rosas crescem e desabrocham como que num milagre da natureza.
Há rosas podem se abrir em até 72 pétalas, porém, de forma gradativa: quando as primeiras pétalas se abrem, muitas ainda estão fechadas no interior do botão. O desabrochar de uma rosa é o emblema da transição da mente em potência, isto é, a razão seminal, para a mente em ato, vale dizer, a consciência desperta; mas esta transição é gradativa como o desabrochar de um rosa. Os budistas chamam a esta transição bodhi (iluminação); nós, cristãos, gnose.
Com efeito, da mesma forma que um botão de rosa desabrocha ao tocarem nele os raios da luz solar, nossa alma floresce ao ser iluminada pelo sol da verdade. A mentira é somente trevas, nada pode operar senão morte.
Falamos, em nossa introdução, de dois livros: o livro da natureza (a revelação natural) e o livro da Escritura (a revelação escrita). Gostaríamos de introduzir um terceiro livro, a saber, o livro da alma, isto é, a revelação interna. O livro da alma é razão seminal quando está fechado, mas é gnose quando é aberto. A verdade está toda ela dentro de nós como um rolo de livro (semelhante aos dos tempos dos profetas de Israel) fechado e selado com sete selos. A abertura de um livro fechado, na tipologia bíblica, quer dizer “revelação de mistérios”.
O caminho da gnose não é diverso ou contrário ao da razão. Se entendermos a razão como um dom divino que se mostra no poder de achar a verdade, todo exercício da razão o é, também, da gnose. A verdade, quando proclamada verbalmente, pode ser identificada de forma imediata pela razão (que é espiritual e interna), sem raciocínio, porque reconhecemos aquela dentro de nós. Não queremos dizer com isto que se deve excluir o raciocínio, mas apenas que este não deve ser confundido com a razão.
Muitos confundem a razão com a inteligência, isto é, a faculdade de discorrer e raciocinar. A inteligência é uma auxiliar da razão, e esta, por sua vez, é um regulador que faculta à primeira o conhecimento dos elementos constitutivos da verdade.
A revelação interna manifesta-se, em parte, nas aspirações e arquétipos mais íntimos, autênticos e originários escritos no pergaminho da alma. Por aí se vê que nosso conceito de razão difere em muito do do racionalismo materialista, o qual a concebe como um método pautado no cálculo e na lógica, vale dizer, como o cadáver da inteligência.
Emanuel Swedenborg dirá que a racionalidade é a faculdade de compreender, a qual vem da luz espiritual e está no homem pelo Senhor só. Segundo ele, por esta faculdade pode o homem ser elevado a uma sabedoria quase angélica.
Para que fique bem clara a diferença entre razão e inteligência, ilustraremo-la com um exemplo. Quando um cientista projeta uma arma de destruição em massa, ele está utilizando sua inteligência de maneira contrária à razão. A razão, portanto, é um discernimento profundo das coisas, ao passo que a inteligência é puramente operativa, instrumental.
A revelação interna, com efeito, é também o espírito humano testificando da verdade. O fruto da verdade e seu efeito no espírito são inconfundíveis. Não é um arrepio subjetivo, e os que assim pensam, nada entenderam. Estamos falando de um fogo que arde de amor no coração. A mentira jamais pode penetrar na divisão entre alma e espírito. Só a verdade o faz, curando o homem da doença da ignorância, libertando-o, consolando-o, edificando-o (é pelo fruto que se conhece a árvore, como ensinou Jesus).
Por que ao se contemplar a natureza pode-se alcançar uma gnose? Porque a compreensão do livro da natureza é um estímulo que provoca a chispa e abre os selos do livro da alma. Por que pela meditação nas palavras dos sábios, também alcançamos a Gnose? Porque quando se entende com o coração os enigmas dos sábios, também desta forma o livro da alma é aberto.
Uma árvore má não pode dar bons frutos, assim como uma árvore boa não pode dar bons frutos. A árvore da verdade só pode dar frutos de consolo, paz, alegria. Quando sentimos a libertação e a cura irromper em nós por algum conhecimento, tais frutos são a alma e a vida mesmas testemunhando de que este conhecimento está de acordo com seus livros. O fruto da verdade é o despertamento da chispa da alma, a qual é o fogo da vida e um elixir de vitalidade para os ossos, juntas e medulas. Se a verdade coincide com o bom fruto, é porque ela também coincide com o bem supremo.
O erro e o engano não podem gerar bom fruto, assim como a escuridão não faz uma roseira florescer. Assim como a videira só pode dar uvas, e a figueira, figos (pois a árvore dá fruto segundo a sua espécie), o engano só gera tristeza, tédio, desespero, desordem mental e obscurantismo. Quem diz que não há diferença entre a verdade e o erro, está na escuridão. Pode alguém confundir a noite com a dia, ou a destra com a canhestra?
Este despertar da consciência, que se dá como o desabrochar de uma rosa é, com efeito, uma evolução no sentido de uma atualização, de uma passagem da potência (dynamis) para o ato (energeia). Só a verdade faz o homem renascer pela renovação do espírito de seu entendimento. A palavra da verdade é um espírito que vivifica e uma água que lava, fazendo nascer um novo ser.
A Potência (dynamis), num primeiro momento (de acordo com o que ensinam os filósofos), enquanto capacidade de uma coisa produzir uma mudança em outra, pode ser ativa ou passiva. A passiva é aquela que se manifesta no paciente de uma ação, enquanto uma disposição para acolher o efeito; a ativa, por outro lado, é a que se encontra no agente desta ação, enquanto uma capacidade para produzi-la (assim como seu efeito) antes mesmo que aconteça.
O conceito de potência, todavia, pode ser melhor entendido como a potencialidade que tem uma única coisa de passar de um estado para outro. Com efeito, A tornou-se B porque já era B em potencial. O Ato (energeia) seria a consubstanciação desta potencialidade
Muitas das vezes, é o sofrimento que desperta a chispa da alma, convertendo a compaixão em potência, em manifestação atual. E isto tanto é válido para um indivíduo quanto para a humanidade como um todo, a qual pode ser tomada como um único homem, desde seus primórdios até os nossos dias. Este é o espinhoso caminho da evolução pela dor.
A morte existe no mundo para compelir o homem a buscar o segredo da imortalidade. O sofrimento é o que, em muitos casos, estimula o homem a pesquisar e indagar o universo. Por ignorância e por fraqueza, o homem, em seu atual estado, é empurrado ao sabor das fatalidades cegas da natureza, tornando-se presa fácil da morte, da doença e do envelhecimento. A natureza mesma de nada tem culpa, cumprindo apenas as ordens de suas leis inerentes. Enquanto estas leis não forem devidamente conhecidas, estaremos sempre nos ferindo nelas. Esperamos que esta evolução da consciência continue, até que o homem um dia assuma sua posição constitucional de sacerdote da natureza e padre da luz que aperfeiçoa todas as coisas. A pedra filosofal será um fato para toda a humanidade quando ela estiver suficientemente madura para isto.
Tuesday, September 27, 2005
O PERGAMINHO DA ALMA
Postado por André Figueiredo às 6:37 AM
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